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a mocinha descia as escadas apressada, franzindo as sobrancelhas depois de estalar a língua no céu da boca e acenando com a cabeça em reprovação. tinha vindo, irritada, atender ao patrão que chegava gritando em casa, e tão logo a alcançou, despejou o filho em seus braços. antonio era um homem alto e corpulento que, dizia ela e todas as outras que trabalhavam na casa, vivia faz muito tempo sozinho e com isso tinha ganhado maus hábitos demais. isso para não falar no menino que...
“laura, vai chegar aí o major e eu não quero que ninguém vá me chamar. não posso atender ninguém que apareça, ninguém que telefone, entendeu?”
“nem se for do palácio?”
“nem se for o papa, laura.”
ela fez que sim-tinha-entendido, mas o patrão nem viu - saiu resmungando qualquer coisa antes de subir as escadas e desaparecer escritório adentro, deixando os dois sozinhos no térreo. laura pôs o menino no chão, farta do peso (tinha uns quatro anos e pesava pelo menos uma vez e meia a sua idade) e da companhia. não tinha mesmo jeito com crianças e com leopoldo, mimado e nervoso, era ainda pior. o menino, ah, sim. leopoldinho tinha dois anos quando antonio kirchherr se separou de sua esposa, história que todas as meninas gostavam de contar umas para as outras à noite, na cozinha, fazendo arregalar os olhos das novatas.
antonio e leandra casaram-se, por intermédio dos pais da noiva, quando o homem tinha já mais de trinta, portanto já um pouco além da idade para isso. além do mais, estava muito mais interessado em galgar os degraus de mármore do exército, era preciso conhecer gente, viajar, passar a semana na escola de guerra e os sábados na hípica, conversar sobre política, procurar saber como conversar sobre política, era preciso sempre estar longe de casa, viajar, viajar tanto que ficava mesmo parecendo uma desculpa para nunca cumprir com suas obrigações de marido. mas não precisava se preocupar com a esposa, recém-casada e sozinha na casa ancestral, porque vinha sempre tio manuel para distraí-la. as empregadas mais antigas lembravam dos dois na sala de visitas, tomando chá, ele sempre tão bem arrumado, fazendo-a rir tanto, tanto, de um jeito que nunca tinham visto antes. manuel era o irmão mais novo do pai de antonio e um de seus poucos parentes vivos. por isso, sentia que era seu dever passar sempre na casa do sobrinho e certificar-se que estava tudo bem, tudo bem mesmo. estava na casa dos cinquenta e tinha aproveitado bem o dinheiro da herança, de forma que os investimentos e negócios lhe permitiram uma aposentadoria tranquila mesmo muito cedo, de forma que não tinha tantas obrigações e muito tempo livre para distrair a pobre esposa em sua torre de marfim.
e o tempo foi passando. quase no terceiro aniversário do casamento dos pais, nasceu maria lucia, que foi recebida com o nome da avó e um suspiro de alívio com o nascimento da menina, que se mostrava mesmo muito bonitinha e cada vez mais inteligente conforme o tempo passava, depois margarida, que tinha nome de personagem de livro que leandra gostava e era tão bonitinha quanto e assim a casa foi se enchendo de herdeiras. tudo ia bem, muito bem mesmo, no lar dos kirchherr, para sorte de antonio, que andava cada vez mais cansado do vai e vem dos ministérios e de gente que ficava em dúvida se contava como xenofobia odiar. a vida corria com normalidade, até que o destino lhes aprontou como apronta sempre. morreu tio manuel, acidente de carro terrível etc. etc., ficaram todos muito tristes, leandra a mais triste entre todos, lágrimas tão profusas que até antonio que era sensível pensou que fossem até um exagero. passou mesmo muito tempo desmanchando-se em tristezas, tão profundamente que nem a chegada do filho caçula uns tantos anos depois conseguiu aplacar. antonio sentava na copa no escuro da madrugada com o rosto entre as mãos e percebia com certa aflição que estava já perdendo a paciência junto com o juízo. veio a filha mais velha na ponta dos pés, um dia, e conversaram. disse-lhe tudo que tinha na cabeça,que talvez fosse um marido mesmo muito mau e que talvez não fosse nem de tio manuel que leandra sentisse falta mas sim de como a sua vida era muito melhor e mais colorida quando ele era vivo, e, sem ele, estava presa àquela cansativa casa de mármore e a vida de filhos, viagens e recepções. a menina escutou a tudo e meio inocente, meio por pena, fez que não com a cabeça e contou do que via quando era pequenina, de quando tio manuel chegava-se devagarinho que nem borboleta e inclinava-se assim e assim perto de sua mãe…
foi o suficiente.
o rosto vermelho como uma flor, antonio galopou escada acima, pisando duro em desespero, a menina atrás dele pedindo que se acalmasse pelo amor dos santos, que não tinha dito por mal e tudo mais, tudo aquilo que ele já não ouvia pois estava em outro mundo, onde só leandra e seu orgulho ferido existiam. irrompeu quarto adentro, vieram as acusações gritos, o dedo em riste, tudo que no fundo era um pedido desesperado para ouvir dela que estava exagerando, doido, até, e que não era nada daquilo.
mas não ouviu.
ela, muito digna sempre, levantou-se mesmo de camisola e sentou-se na beira da cama enquanto lhe destruía com toda a gentileza o que sobrava de si. disse-lhe que tinha sim amado manuel por toda a sua vida e que sofria demasiado agora que ele já não estava mais ali, não apenas por sua ausência mas por ter de suportar ali o capitão patinhas na sua casinha de bonecas, cada vez mais tonto, mais cheio de si, que ela só continuava porque manuel tinha deixado com ela as duas joias mais preciosas, e por elas continuava a viver a despeito dele.
diante da humilhação, a única solução era o divórcio (na impossibilidade, claro, de buscar o revólver no armário e atirar na cara de um fantasma). leandra mudou-se no final da semana, levando consigo suas filhas de manuel. então passou o tempo e, com ele também passou o processo do divórcio, o processo de guarda (as meninas ficavam com a mãe, vinham visitar quando e se quisessem - maria vinha sempre, a outra quase nunca -, o menino com o pai), a separação dos bens (o que era de manuel agora era, logicamente, das duas).
foram embora, e ficaram antonio e leopoldo, tão santo que dormira e mamara e crescera durante toda a comoção sem nem se incomodar com nada. leopoldo pequenino, que havia nascido lindo, enorme, tudo o que antonio podia querer de um filho, olhos azuis como redondas bolinhas de vidro, grandes bochechas rosadas, não chorava quase nunca, dormia a noite toda sem incomodar ninguém. leopoldo era lindo, e acima de tudo seu filho.
criou-o sozinho, se desconsiderarmos, claro, o batalhão de babás arranjado de forma que houvesse sempre uma a segurá-lo, dar-lhe banho, oferecer a mamadeira quando o pai não podia (e não podia nunca, obviamente).